domingo, 1 de maio de 2011

Na noite da rua


Hoje conhecí uns homens. Vieram se aproximando e me ofereceram uma oportunidade de ouro, como eles disseram. Repassar informações sobre algumas pessoas das ruas por onde vivo. Fiquei desconfiado, mas calei, lembrei que já tinha visto Sotero, um dos meus irmãos de rua, sofrer demais quando recusou fazer algo semelhante. Aqui onde vivo é assim, não se tem muita opção da forma de morrer, ou se morre através de uma gang de rua ou através de uma gang de escritório.Quando se nasce nesse meio, já se é marcado como gado no curral.Somos cabeças escravizadas onde o senhor é a marginalidade, as drogas, a corrupção institucionalizada. A defesa, para muitos de nós é cheirar, é se picar, é viver vagando como almas sem rumo,como corpos possuídos por um destino que não nos dá trégua, não nos deixa sequer oportunidade de deitar à noite no chão de uma calçada e dormir. Todo o tempo,o sentido de alerta nos possui e isso me deixa muito cansado. Preciso descobrir um lugar pra dormir que me deixe sonhar, que o frio não perturbe meus ossos, que a fome não perturbe meu estômago que vira e revira de vontade de comer.
Estou aqui, sentado pensando essas coisas, enquanto os homens na minha frente começam a gritar comigo "tá entendendo porra? Tá maluco é? Responde!" Coloco a mão no bolso, sinto o frio do canivete, o aço bom tirado de um turista que tentou me fotografar nu."Sim senhor, respondo, tô entendendo tudo. Eles vão se aproximando mais e mais de mim e o medo toma conta de mim, pego no canivete e tomo a decisão de há muito pensada de tirar minha vida com minhas próprias mãos, não quero apanhar, não quero ir pras jaulas deles, onde quem entra não sai de lá nunca mais, outras jaulas, outros senhores.Quero ser senhor do que resta de mim. Escuto sons estranhos na  noite e vejo um deles cair aos meus pés, enquanto o sangue escorre de sua cabeça. Fujo correndo como um bicho saído de uma jaula. 
O vento bate no meu rosto e sinto uma força me guiando, me lembro de minha mãe apanhando de homens que queriam dela mais que ela podia dar. Lembro do olho dela olhando pra mim e me dizendo: "você é diferente, você vai fazer diferente". E o que é ser diferente, pensei eu naquele instante.Nunca tinha conseguido decifrar o que ela quis dizer.Agora, correndo feito bicho acuado,acho que ela errou, sou igual a todos, sinto fome, desejo ter um local pra dormir, me escondo como rato nos esgotos. Meu olho chora de raiva,de dor de perdição, sinto as pernas bambearem e um frio gelado percorrer meu corpo vestido com esses trapos finos.Escuto meu nome sendo chamado. Paro arfando de cansaço, de medo, de raiva , de dor rasgada. Me aproximo e vejo meus amigos sentados apinhados, uns cheirados, outros picados, outros com o corpo arroxeado, outros vendidos. Alguns falando baixo dizendo coisas que não se consegue compreender. Ali é minha casa, eles são meus irmãos, órfáos de um mundo que esqueceu de partilhar, que esqueceu dos também filhos das estrelas. Sento junto com eles, respiro o cheiro conhecido dos corpos sujos, me enrosco no espaço que resta e durmo exausto, calado em minha dor.

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Primeiro relato


Não sinto fome como as pessoas normais, uma vez ao dia me é suficiente. Vou aos lixões ou simplesmente peço as pessoas um pouco de comida. As vezes elas me dão, as vezes chamam a policia, têm medo de mim, acredito que muitas vezes meus olhos passam pra elas a dor da injustiça e por isto elas temem. Não as quero mal, mas também não as quero bem. Meu coração aprendeu a não sentir e minha cabeça aprendeu a perceber.
Vou me reunir com meus amigos, são drogados a grande maioria, seus sonhos é se drogarem, mais e mais, é viajarem por mundos que já conheço dentro de mim. Um deles está muito ferido na perna. Uma briga com um traficante o deixou desequilibrado, foi levado ao hospital, mas sabia que não podia falar o que ocorreu, disse que estava brincando com o irmão e caiu. Calou a dor que sentiu quando levou uma surra com a chibata do homem e a dor maior quando sentiu a carne rasgada por tentar fugir, foi agarrado pela perna, queria não ter perna naquele instante, queria ser como a lagartixa que deixa o rabo quando está em perigo. Mas a perna não saiu. Quando a faca entrou, a dor foi sua salvação. Sentiu uma força que nunca houvera se dado conta. Puxou com violência sua perna e gritou tão forte que acordou a casinha da policia e os policiais que ali estavam. Um deles o conhecia tanto! O traficante o soltou e correu. E ele foi levado ao hospital. Lá se comoveu com a quantidade de gente nos corredores, se comoveu com a frieza dos doutores, se comoveu com o cansaço dos e das enfermeiras. Foi tratado com cuidado “uma criança, meu Deus” ouvia aquelas pessoas de branco a falar. Sim, era uma criança, mas já sabia da vida o que poucos adultos sabem. Já não precisava mais viver, tivera sua cota esgotada, estava com a data de validade vencida. Queria ir pra o mundo onde as drogas lhe levavam, lá não tinha fome, miséria, injustiça, só força e coragem. Lá também podia encontrar com seus irmãos que já haviam sido levados.
Essa era uma das histórias de meus amigos e eu, Emanuel a tudo presenciava. Iria me encontrar com eles hoje, quase agora.
Amanhã falarei mais, a mulher que recebe minha fala está cansada.